Luiz Roberto Ayoub comenta primeiro caso de Recuperação Judicial de clube de futebol no Brasil

O ano de 2021 pode representar um marco na trajetória de clubes de futebol no Brasil. Após décadas enfrentando dificuldades financeiras que passam por dívidas, penhoras e outros obstáculos, o futebol brasileiro acena para a possibilidade de um soerguimento a partir do uso inédito de um instrumento jurídico, até então, restrito a empresas.

Em março, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) reconheceu o pedido de recuperação do Figueirense Futebol Clube, por entender que o clube se enquadra como associação civil e que, por praticar uma atividade econômica, tem direito de pleitear os dispositivos previstos pela Lei 11.101/2005. Este foi o primeiro caso de um clube brasileiro a se submeter ao processo de recuperação e pode representar um importante precedente para outras agremiações que também precisam se reestruturar.

Representante do Figueirense no processo de recuperação, juntamente com a consultoria da Alvarez & Marçal, o advogado Luiz Roberto Ayoub, sócio do Galdino & Coelho Advogados, comenta mais detalhes deste caso pioneiro.

1 – Como foi possível enquadrar um Figueirense Futebol Clube na Lei de Recuperação Judicial?

Apesar da roupagem de associação, os clubes de futebol são um agente econômico que geram riqueza e que por isso, na forma da lei civil, podem ser contemplados como uma empresa. Acho que não há dúvidas de que o futebol, nos tempos atuais, já não corresponde mais àquela atividade que foi trazida pelos ingleses ao Brasil e que era voltada tão somente ao lazer. Hoje, não se pode colocar em dúvida que o futebol é um segmento de negócios, que gera uma riqueza imensa, além de empregos diretos e indiretos, pagamento de tributos e uma série de outras questões que se encaixam na definição de empresa ou de sociedade empresária, cujo diploma correto é o Código Civil.

2 – Não é de hoje que os clubes de futebol do Brasil enfrentam dificuldades financeiras. Por que só agora foi adotada a Recuperação Judicial ou Extrajudicial como solução?

O caso do Figueirense é pioneiro, corajoso, empreendedor e buscou soluções. A lei de Recuperação Judicial é de 2005, mas até hoje não é muito bem conhecida. Na interpretação fria da letra da lei, muitos ainda entendem que como associação os clubes de futebol não poderiam se submeter a um processo de recuperação. Com esse caso do Figueirense, porém, eu começo a perceber que as portas se abrem para tornar o futebol um ambiente muito mais profissional, recuperado e gerando riqueza para o país.

3 – O que os dirigentes de clubes de futebol precisam considerar antes de iniciarem um processo de Recuperação Judicial ou Extrajudicial?

Primeiramente, é necessário que o clube seja um agente econômico viável. Porque a Recuperação Judicial é uma proteção para que se faça uma reestruturação do clube de futebol. A reestruturação do clube vem de um trabalho normalmente conduzido por consultorias especializadas, como, no caso do Figueirense, a Alvarez & Marçal. A Recuperação Judicial ou Extrajudicial proporciona um ambiente de maior tranquilidade para que o clube possa equacionar as dívidas através de uma ampla negociação entre credores e devedores.

4 – Pode-se entender, então, a Recuperação Judicial ou Extrajudicial como um instrumento inicial, um primeiro passo, para os clubes iniciarem sua reestruturação?

Eu não acredito que qualquer dirigente não tenha ciência da crise pela qual seu clube passa. O problema é entender o que é uma recuperação. Os clubes são associações que praticam atividades econômicas, diferentes de associações de moradores, de condomínio, de pais de alunos. Então, tendo ciência de que esse instrumento pode ser utilizado, a chance dos clubes se reorganizarem e soerguerem é muito grande. Em outras palavras, é uma oportunidade para os clubes se profissionalizarem através da reestruturação protegida pela recuperação judicial ou extrajudicial.

5 – O que é necessário para um agente econômico com as características de um clube de futebol entrar em recuperação?

Em primeiro lugar tem que ser um agente viável. Se você for seguir a letra fria da lei, tem que ser um empresário ou uma sociedade empresária inscrita na junta comercial. Na minha opinião, e de tantos outros, não é necessário. Pode estar inscrito em outro registro, como o Registro Civil das Pessoas Jurídicas. O registro tem duas finalidades: afastar o aventureiro e demonstrar a regularidade de sua atividade. De acordo com o CPC, fatos notórios dispensam inclusive essa prova. Alguém duvida que o Figueirense, e tantos outros clubes de futebol, exerçam regularmente sua atividade? O Figueirense, por exemplo, está completando 100 anos. Na minha leitura, respeitando sempre posições em sentido contrário, uma associação pode ser revestida deste nome, mas ser uma empresa se forem atividades que geram riqueza. Além disso, existem outros requisitos como não ter pedido recuperação há mais de 5 anos, não ser falido, verificação dos balancetes, e verificar se o agente econômico está com toda a documentação pronta são alguns deles.

7 – Uma das objeções dos clubes à Recuperação Judicial é o impacto de imagem que um processo como esse pode gerar eventualmente. Essa preocupação se justifica?

A falta de conhecimento sobre o que é a recuperação muitas vezes leva à uma interpretação equivocada, que remete à concordata. No entanto, não há relação direta. A recuperação judicial ou extrajudicial é um dispositivo legal que pode criar um ambiente de blindagem para que o trabalho de reestruturação seja desenvolvido com tranquilidade e segurança jurídica. O agente econômico que tem seu pedido de recuperação deferido consegue, por exemplo, um período relativamente longo no qual as dívidas serão tratadas em amplas negociações entre credores e devedores. O objetivo final de todo esse processo é o soerguimento empresarial de um agente econômico que é relevante porque gera riqueza para a economia do país. Por isso, há aqui uma oração chave, que é a “solidarização do sacrifício” que norteia as negociações propondo que todas as partes sejam solidárias ao sacrifício em prol de um benefício mais amplo.

8 – Quais são os impactos imediatos que os clubes podem perceber ao iniciar um processo de recuperação judicial ou extrajudicial?

O efeito imediato é “cessar a sangria”. Quando você tem um deferimento do pedido de recuperação ou uma cautelar antecedente, como no caso do Figueirense, todas as agressões, conscrições e penhoras não podem ocorrer. O clube fica blindado. Essa é a maior e mais importante percepção. Outra coisa é o olhar do investidor para um agente que, até então de forma artesanal, vinha tocando sua atividade econômica e passa a ter um plano de governança.

9 – Quais são as fases de um processo de recuperação?

Tem uma etapa extrajudicial e depois as fases do processo. Na parte extrajudicial é preciso organizar todas as documentações que a lei exige. Sob o ponto de vista do processo em si, há a fase de pedido, que é a postulação. Em seguida, vem o deferimento ou indeferimento do processamento da recuperação judicial. Essa é uma etapa importante, pois um eventual indeferimento não conduz a uma falência, mas volta tudo ao status quo ante. Se for deferido o processamento da Recuperação Judicial, o clube entra em um stay period e, a partir daí, a reestruturação passa por uma ampla negociação entre quatro classes de credores: trabalhistas (limitados a 150 salários mínimos), com garantia real, quirografários (onde se inclui os excessos dos 150 salários mínimos) e as microempresas e empresas de pequeno porte. Feita essa negociação, chega-se a um plano que vai ser deliberado por esses credores. Aprovado o plano, o Poder Judiciário verifica se há algum tipo de ilegalidade e, caso não, homologa para ser constituído um título executivo judicial.

10 – Quais as recomendações você deixaria para os outros clubes de futebol que estão passando por dificuldades e precisam se reestruturar?

A primeira coisa que eu faria, se eu fosse dirigente de um clube de futebol em dificuldade, seria procurar apoio profissional especializado no assunto. O tema é ainda controvertido e é possível, inclusive, que tribunais tenham entendimentos diferentes dependendo da forma como o pedido for feito. Mas há fortíssimos argumentos para se admitir a recuperação judicial de clubes de futebol, tais quais os precedentes que ocorreram e estão ocorrendo. Os clubes têm a grande chance de se soerguer e, ao mesmo tempo, profissionalizar o futebol, seguindo um modelo que na Europa já existe. O futebol é um grande negócio e nós estamos perdendo muito valor no Brasil ao não observar os clubes como agentes de um rico segmento econômico. Além da recuperação, a profissionalização parece, a meu ver, indispensável.